Entre a galinha e a asa (para Affonso Romano de Sant'Anna)
Dando faxina no meu baú de relíquias e preciosidades, encontrei uns recortes de jornais que me arremessaram feito uma catapulta no tempo. Eram diversos textos do Affonso Romano de Sant'Anna, publicados em sua coluna no Jornal do Brasil, na década de 80. Nesse tempo, eu já era uma leitora voraz desse escritor e tinha por hábito recortar suas publicações e arquivá-las em uma pastinha religiosamente.
Me lembro que em uma das vezes que fui ao aviário para minha mãe, quase tive um ataque de nervos quando o balconista embalou a minha galinha em cima da crônica do meu poeta. Eu era ainda uma jovem muito boba e me faltou coragem para pedir ao balconista aquela folha de jornal, de valor inestimável; então, preferi optar pelo sofrimento atroz a cada movimento abusivo do empacotador. Primeiro, ele rasgou um pedaço da folha, mas deixou o texto intacto, graças a Deus! E depois de alguns movimentos ameaçadores, que me remoeram as entranhas, concluiu finalmente a sua tarefa, deitando a galinha em berço esplêndido, forrado com belas palavras articuladas e confortáveis que pareciam minimizar o conceito de morte daquele ser quase alado. Quem visse, ficaria convicto de que ali estava uma espécie de Cinderela sonhando com altos voos nunca em vida alcançados.
Sob o manto confortável do alívio, concluí, já recuperada, que a vítima foi devidamente ensacada sem causar maiores danos à literatura; e eu pude, então, sair do aviário vitoriosa, com a sensação de atravessar portais mágicos, carregando o maior paradoxo da história da cultura universal: uma galinha mortíssima e um texto transbordando imortalidade, cuja mínima possibilidade de leitura trouxe novas cores e fulgores ao percurso que me levou de volta pra casa, depois daquele resgate.
Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 23/06/2019
Alterado em 07/01/2025