Cristina Ribeiro - Prosa & Verso
"Eu sei que canto e a canção é tudo" - Cecília Meireles
Textos
Centro do Rio
          Ainda não encontrei um jeito de andar pelo Centro do Rio com a cabeça conectada no "modo-racional". O Centro é uma catapulta infalível com um poder de me atirar pra tudo quanto é lugar do tempo desse território maravilhoso que o Estácio de Sá fundou. É só chegar na Alfândega para logo avistar uma nuvem em forma de camarote com lindas "francesinhas" e janotas jogando beijos na minha direção.  Até a Moreninha, lenda de Paquetá, chega  arrastando o Joaquim Manuel de Macedo e o José de Alencar emparelhados com Machado de Assis e Lima Barreto, provavelmente, para o Real Gabinete Português de Leitura. O corpo mental é meu e, nele, a imaginação é que manda. O resultado disso é o prefeito Pereira Passos, de braços dados com o Marquês de Sapucaí, posando para o Debret, na Praça XV.  Aí, entra o Donga cantando Pelo Telefone, direto da Carioca, com a Tia Ciata arrastando as sandálias no quintal da sua casa.
Fazer o quê... Dizem que eu tenho TDH. Quem vê minha cara na Saara deve pensar muita coisa de mim... Mas são aquelas ruelinhas... antigos cenários das donzelas, musas daqueles tempos, e de todos os personagens românticos engomadinhos pela Ouvidor - o endereço sensação dos romances da atualidade passada. Com um mínimo de imaginação, dá pra ver D. Pedro II passando de carruagem ou a cavalo no Largo de São Francisco - não sei se ele era de dar um tchauzinho, mas foi assim que ele apareceu pra mim. Com o medo, personagem ícone de toda a nossa história, a imaginação recomenda cuidado porque Madame Satã andava pela área com a navalha afiada, acho que na Lapa da boemia. E por metro quadrado, vamos ainda testemunhar os suores, lágrimas e sangue derramados no chão por seres humanos submetidos à chibata e correntes. Na adolescência, ficava pensando: "- Espumas flutuantes, caro Castro, é uma imagem muito fluida, muito fofa pra esse tema..."

          Tem alguma coisa surpreendente, exótica e fantástica, na altura do espantoso, na zona central. É o lugar onde a História e a contemporaneidade se encontram e convivem de forma  diversa e amistosa. É, no mínimo, surpreendente o efeito desse paradoxo cruzando monumentos e arquiteturas pelas praças e ruas. Os prédios altíssimos parece que atingiram os cumes das moléculas de oxigênio para mirarem com maior abrangência os casarios e os monumentos batizados pelos pombos. Minhas asas também não andam lá muito alvas. Estão pesadas, contaminadas de perdas, indignação, saudades... mas nada que um bom par de asas, nas minhas alpargatas, não possa resolver naquele recôndito cultural lindo que transforma todo visitante em freguês.

          O Centro do Rio tem alma. Uma alma poliglota que dialoga com várias línguas e exibe um desfile permanente de gente portando objetos impregnados de ímãs que atraem mãos inescrupulosas; enquanto outros seres, "não identificáveis", se arrastam, chamam, gritam, exibindo nas mãos sedentas a fome. Dentre eles, há aqueles que nem isso. Dormem para desistir ou porque desistiram. Na sorte, acordam com um embrulhinho de salgado em seus panos imundos, se uma ratazana não o carregar para comer antes. Quem andar por aquelas ruelas com disposição e coragem no olhar, terá uma tecla milagrosa no modo "intérprete-tradutora" que  deixará sua sensibilidade do tamanho do que for capaz de sentir. O Centro dói nas entranhas.

          Foi o primeiro chão que pisei no Rio, após sair da barca de Niterói. Tinha apenas 10 aninhos. O cheiro  de sonho, maçã e café me instigava os sentidos; as motos, os cabeludos e aquele tráfego intenso me causavam uma enorme estranheza. Minha terra tinha uma coisa de cada: um cinema, um hotelzinho, uma escola... mas tinha muitas palmeiras, charretes, carros de bois e um cheiro alucinante de carambola e jabuticaba. Na infame década de 70, eu não poderia mesmo entender e perdoar o Centro do Rio. Hoje, com o arquivo superlotado de informações e resiliências, quase um arquivo morto, ficou tudo certo e mais claro entre nós. E mesmo com o cheirinho insuportável de amônia, denunciando o mal uso dos sprays urinários masculinos, na via pública, o lugar me parece muito chique pelo que tem de história e de cultura. É difícil optar para onde atirar os olhos.

          No Centro se encontra tudo: igrejas, cursos, "casas de massagem", clínicas... e todo tipo de iguaria e (f)utilidades. O Centro tem licença poética para os seus delitos porque transcende... está acima do bem e do mal. Ele quer apenas servir a todos e todas com eficiência.

          Precisando de algo? No Centro tem! Quer apostar quanto? Na Carioca, se tinha uma roleta em 1916, imagina quantas agora?

Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 07/03/2025
Alterado em 08/03/2025