Meus pais
O meu pai não tinha o conhecimento oficial, mas aprendeu a ler sem frequentar escola e era um esquerdista de punho fechado. Assim também era minha mãe, porém menos entusiasmada politicamente, mas caminhava rumo à esquerda na boa. Nenhum dos dois nos incutiram a ideia de religião, pecado... essas coisas que restringem o pensamento e levam ao temor a Deus ou ao demônio. Me lembro que eles apontavam muito para o equilíbrio do corpo mental. Recomendavam racionalidade e medida. Pareciam gregos.
Era comum ver meu pai, na sala, lendo um dos meus dicionários. Não interferia, mas duvidava da eficácia daquela leitura sem o emprego da palavra em frases. Ok. Um belo dia, cursando Letras na UERJ, um professor de nome Amós, nos chamou atenção para o quê? A leitura do dicionário. "Não é só para consulta, pessoal!" - disse ele. Nessa época, o meu pai já havia partido, mas foi como levar um teco na cabeça descobrir que aquele homem, com pouco estudo, sabia algo que eu não tinha o direito de ignorar nem imaginar mesmo que assim não fosse.
O meu ensino fundamental inteiro aconteceu no espaço de tempo em que a ditadura submeteu toda a população brasileira às trevas. Assim, os estudos de História e Geografia eram na base do cartão postal e discurso laudatório - e ai do professor que abrisse a boca com ânimo, crítica e lucidez! Eles eram bobos? Que nada! Seguiam as regras religiosamente e, vez ou outra, nos recomendavam jogar fora qualquer papeuzinho que recebêssemos na rua e nem se preocupavam com lixeira. Enfim, quando eu chegava em casa, é que os meus estudos de História e Geografia começavam. Meus professores eram o meu pai e um amigo dele, o Sr Alexandre. É que eu comentava sobre o conto da carochinha escolar a respeito dos grandes feitos dos nossos imperadores, bandeirantes... como se aquilo fosse o máximo de um filme digno de um Oscar. Na geografia, quase me tornei pintora, mas faltou o talento nato exigido. Fiquei mesmo à beira de uma tendinite de tanto desenhar mapas dos Estados brasileiros. Falar nisso, tinha na ponta da língua as capitais e também os hinos. Cantávamos quatro, antes de entrar na sala de aula. E quando a diretora nos visitava, fazíamos assim com as mãos, ou seja, uma agitada juvenil ridícula manual receptiva à magnânima. Ah, sim, minha dupla de professores... claro, ficava indignada com os contos didáticos da escola e repetiam os mesmos gestos dos alunos com a diretora, só que agitando os dedos indicadores e gritando: Não é nada disso! Cabral não era bonzinho! Teve matança generalizada de índio! E bota interjeição e mais indignação dos dois em tudo isso!
Nem tudo, eu podia contar em casa. Embora pacífico, meu pai era um democrata apaixonado - classificado de comunista pelos da direita que ainda estão, por aí, expelindo o fel da ignorância política por todos os orifícios -, então ele, o meu magister caseiro, ficava na ponta dos pés, jogando o indicador em todas as direções enquanto discursava. Aí, entrava em cena a minha mãe com um psiu temente e o dedinho nos lábios.
Até que chegou o meu dia de enfrentar o vestibular da Cesgranrio. Era 1979 e deu UFRJ na cabeça. Morava na zona oeste e meu pai me levava às 04h20 da manhã ao ponto do ônibus. Tinha que chegar às 07 horas na Faculdade de Letras, na Avenida Chile. Lá conheci Professores incríveis: Godofredo De Oliveira Neto, Clécio Quesado, Dalma Nascimento, Helênio, Anazildo Vasconcelos, Guida Nedda Parreiras Horta... e as palestras com Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti e (acreditem!) Darci Ribeiro... meninos, eu vi! E vi muito mais...
Um dia, no mesmo semestre em que iniciei os estudos universitários, uma vizinha chamou minha mãe e perguntou se ela não tinha medo que eu chegasse grávida em casa, com esse negócio de estudar naquele antro de perdição. Da resposta, não me lembro, mas me lembro que ela arrasou.
Que orgulho eu tenho dos meus pais! Sou toda gratidão a eles e ao corpo docente das duas faculdades que orientaram o meu pensamento para outros patamares em que pude avistar, com clareza, todos os elementos que eu precisei para minha formação intelectual e humana.
Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 24/03/2025
Alterado em 26/03/2025