Cristina Ribeiro - Prosa & Verso
"Eu sei que canto e a canção é tudo" - Cecília Meireles
Textos
Separação
          Morei, por um longo tempo em uma casa, o bastante para estreitar laços com todo um universo afetivo que girava em torno de mim. Até que foi preciso seguir um caminho novo e abrir mão de velhos hábitos, cultivados por anos no local, aos quais me submetia, amiúde, como se fosse um vício.

          Separar não implica apenas desligar-se dolorosamente de relações afetivas. É também um momento de desapego a um canto de estudos, livros, objetos, gatinhos - e suas barriguinhas peludas -, convivências… conversas em um ponto do terraço ou jardim, onde passava um vento manso ao encontro do rosto, e agitava levemente a franja da rede. Sim... no canto do terraço, havia uma rede com o formato forjado do meu corpo e, ao longe, tinha folhas de palmeiras acenando, tão altas que, de um terraço no terceiro andar, eu via.

          Quanta coisa significativa naquela casa havia... goiabeira, jambo esparramado no corredor lateral, folhas de guaco alastradas em uma tela e a colheita de mãos maternas para um chá aromático e eficaz para todo fim; e o papagaio da vizinha que cantava “Atirei o pau no gato”, como ninguém jamais cantaria. Da varanda, nem falo... não é nada pequeno o custo de abrir mão do cultivo de plantas e todo um ritual de vasinhos, ferramentas, burrifadores… e a surpresa de cada folha nova, cada flor… sob o fundo musical de maritacas e bem-te-vis...

          Sair da casa de infância é aterrar parte de uma história sob os escombros de um círculo que se fecha. Foram  embora os pais, os irmãos… ficou alguém que, inexplicavelmente, rompe o vínculo parentesco e se nomeia administrador. Daí, por quase um decreto, surge a necessidade de esquecer a janela preferida com o melhor ângulo da lua; como também o uso da espreguiçadeira no jardim, à noite, para contemplar as estrelas, e a visão das Três Marias acima da calha do quartinho de bagunça. Sendo que o tal quartinho se tornou um atelier, onde o pai "pintava o sete" e sempre surpreendia na sua melhor versão do “Faz tudo”. Era o meu Jepeto favorito.

           A casa ficava afogada em azul celeste. Era um convite a viagens noturnas. As sombras dos arvoredos, palmerinhas, projetadas na fachada - e o ventinho -, produziam uma atmosfera mágica, parecia um cinema. Gostava de cantar baixinho no meio daquele olor de folhas, flores, pé de louro e hortelã.  Me lembro de um dia em que fui ao jardim, sentir um cheiro noturno, e dei de cara com um eclipse. Não acreditei naquela overdose sincrônica que envolvia vários elementos de uma atmosfera só. Sempre tinha uma acontecência, como a de outra vez em que eu estava aguando planta, quando o Jô Soares gritou o nome de um professor, na TV da sala. Saí correndo e me atirei na poltrona com uma felicidade 'louca!'... e o resto foi um eclipse total do planeta, como só mesmo o Jô... ele era um especialista em provocar esse fenômeno; o professor também. E eu gostei muito desse evento-surpresa porque se tornou parte de todas as cenas marcantes dessa casa na minha memória afetiva.

          Mas tudo passou... foi resumido à conclusão de um círculo, e chegou, finalmente, a hora de seguir adiante. Eu estava quase pronta, mas ainda ouvia vozes pelos cômodos da casa: minha mãe me chamava, meu irmão ria e meu pai punha café na xícara com o barulho delicioso de costume, tal era a altura em que ele levantava a garrafa térmica - e o jato caía certinho no recipiente. Depois, espremia, no café, "limão para afinar o sangue!”, ele repetia sempre a frase para nos induzir ao uso.

          Quando o caminhão-baú chegou, os homens foram carregando as caixas repletas de objetos afetivos que eu embalei com antecedência. Mas... ficou  boiando pela casa tudo o que foi efetivamente importante e, provavelmente, se tornou invisível aos olhos dos novos protagonistas que iniciaram uma outra história no meu paraíso. E eu fui para sempre, sem olhar para trás, sem acreditar que estava deixando, ali, todas as coisas que eu jamais poderia obter, mandar fazer nem comprar por todo o resto da minha vida.

Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 08/04/2025
Alterado em 10/04/2025