Raul na contramão
Ter a minha formação "esculpida" na década de 70 foi, sem dúvida, um privilégio muito grande pra mim. Apesar da ditadura, havia um caldeirão efervescente, contraditório e muito rico culturalmente que conseguiu transformar os "atentos" daquela fase da cultura brasileira. Eu era uma, pois vivia com as antenas plugadas nas grandes novidades que chegavam de toda parte, mesmo sem celular e redes de Internet.
No meio daquela tropicália toda, um maluco-beleza, o Raul Seixas, alfinetou a minha condição humana de menina submetida ainda aos ditames familiares. Com ele, minha mentalidade mudou e criou raízes que envolveram a minha existência. Raul foi um gênio, uma luz que clareou caminhos invisíveis antes, quando a caretice estava no comando, ditando o que não cabia mais naquele momento. Através de todas as suas composições, eu pude criar um elo com uma nova corrente de pensamento fora dos meus padrões, como se eu fosse resgatada ou mesmo abduzida daquele lugar estagnado. A ideia da "Sociedade Alternativa", por exemplo, arquitetou um mundo completamente novo, naquela escuridão, que cheguei a imaginar que seria permanente. Os versos daquela melodia microfônica, anunciante, atingiram minha cabeça como uma faca afiada e me deixaram atônita, pensando em como me livrar das mesmices de uma vez por todas. Pensa na pancada dessa estrofe em 1974:
"Se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou esperar Papai Noel
Ou discutir Carlos Gardel
Então vá
Faz o que tu queres
Pois é tudo da lei
Da lei
Viva, viva
Viva a Sociedade Alternativa!"
Eu tinha até pena da minha mãe. Enquanto o meu pai mantinha os punhos fechados na esquerda e me desviava pelo exemplo, ela preparava a minha irmã para ser somente uma mulher, boa esposa... Eu só assistia as cenas das duas, mas com as ideias do Raul, do Caetano Veloso e Gil na cabeça - melhor nem falar dos escritores e todos os loucos futuristas que chegavam na contramão, trazendo elementos perigosos para o projeto materno vigente na família. Mas o Raul... ele veio pra chacoalhar o bonde velho do Brasil, da minha mãe, porque veio para emaranhar os fios da nossa consciência. Me lembro ainda o quanto me impactaram os versos de Ouro de Tolo, principalmente na estrofe final em que encerra a música com chave de ouro:
"Eu é que não me sento
no trono de um apartamento
com a boca escancarada,
cheia de dentes
esperando a morte chegar
Porque, longe das cercas embandeiradas
que separam quintais,
no cume calmo do meu olho
que vê
assenta a sombra sonora dum disco voador"
Esses versos foram fundamentais na minha vida, eu não poderia mais ser a mesma.
No caso da letra "Trem das Sete", a coisa ultrapassou a atmosfera, me tirou do chão, porque é transcendente demais. A música é um convite "aos que sabem do trem". É uma sacada original, filosófica e mística atrás da outra. E o desfecho da letra não poderia ser melhor quando observa:
"Ói', ói' o mal
Vem de braços
e abraços com o bem
num romance astral
Amém!!"
E o ouvinte fica com a impressão de que o Raul termina a canção de joelhos ao emitir esse amém alongado melodicamente, porque esses versos indicam a continuidade dessa loucura que é a vida.
Eu penso que o grande mal de muitos, até hoje, talvez seja insistir em dar vida ao que já está morto e que talvez nem tenha existido. Isso é grave. Alimentar algo morto despende gastos de toda natureza e sem resultados positivos e eficazes para a vida, o mundo, a humanidade.
Foi só isso que Raul me ensinou.
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• O Paulo Coelho está envolvido como parceiro do Raul, mas... preciso estudar melhor sobre até que ponto se pode atribuir a ele, também, todo esse universo incrível criado pelo Maluco Beleza, o Raulzito. 🤙🖖
Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 13/04/2025
Alterado em 14/04/2025