O Céu de Clara
Clara sempre teve uma urgente necessidade de falar sozinha, porque precisou desesperadamente recriar, inventar um modo paralelo de existir fora das molduras obrigatórias, estabelecidas.
"- A mesma receita prescrita, a mesma fórmula aplicada a todas as pessoas, não está dando certo pra mim", ela pensava.
Tinha desejos próprios e necessidades diferentes. Então, inventou outras pessoas à sua volta. Criou histórias, diálogos, fez muitos discursos... foi atriz, cantora. Nessa condição, ela até pintava. Desenhava nas nuvens do seu quarto, como a natureza produz o pôr do sol que via da janela todo dia.
Nem sempre falou com as paredes. Enchia também muitas folhas de caderno que resultaram em volumes e mais volumes com todo tipo de temas. Via as aranhas produzindo teias com suas pseudopernas muito finas e feias. Eram cenas ridículas, nojentas, mas sugestivas. Lembravam a música "Na asa do vento" em que João Do Vale e Luiz Vieira comparam o ato de compor com as teias da aranha - um trabalho que, mesmo feito diante das pessoas, é misterioso. Ninguém sabe do fazer poético, da tecitura de teias. Por isso, os versos:
"... A ciência da abelha
Da aranha e a minha
Muita gente desconhece..."
Isso mais a convencia a prosseguir fora do ar, coberta de névoas azuis. Era totalmente imprevisível, presa ao incomum, ao que contraria só por fugir ao padrão, às molduras sociais, ao decreto de que mulher tem que passar batom e se encaixar na fita métrica. Não. Ela não podia ver sua alma desmaquiada, não tinha capacidade de viver a vida sem delírio, nos limites do simples café com pão. Precisava imaginar que a vida era uma tela de Monet. Com sua visão de raio-x, atravessava a atmosfera da Terra e, num segundo, mudava seu patamar do dia, direto para a ponta de um arco-íris.
O sistema era a morte, as convenções, regras... Um comportamento único para gregos e xavantes seria, para ela, aterrador. Precisava alcançar um outro horizonte. Ao acordar, dava bom dia ao cenário - que mantinha pronto - e aos seus figurantes, acomodados atrás de uma linda e invisível cortina translúcida. A seguir, tomava o café, mas não acelerava o processo porque o prazer da gula fazia parte desse modo de vida que produziu para si mesma. Aí, sim, do nada, vinham os temas, os discursos, os diálogos e as visões que atravessavam todas as muralhas do planeta para uma bela colheita.
No dia em que sua mãe a viu falando sozinha, ficou apavorada e correu para o marido. Clara estava em uma conversa animadíssima com as paredes; pretendia escrever uma coisa, talvez poema, prosa ou crônica. Além de toda a cenografia improvisada, inventava também melodias, versos, frases. Era uma profusão poética imaginária que ela não sabia o que fazer. E, às vezes, nem fazia. Ficava no meio daquela ópera louca passando tempo, se divertindo.
Nesse dia, a apresentação foi para além das paredes; junto com a mãe, veio também o pai assistir, que vergonha! Pela primeira vez, uma plateia real ocupou discretamente a vidraça da janela, do lado de fora do quarto, para assistir ao estado de loucura de uma atriz tão perfeita que merecia o Molière. Depois, adentraram o cômodo e ocuparam duas cadeiras para emitir comentários a respeito daquela interpretação teatral que jogava os braços e as pernas da filha pra todo lado daquele pequeno quarto quadrado com jeito de Broadway.
Ambos se aproximaram dela com ar pesado de preocupação e, depois de muitos alertas e conselhos, fizeram um mantra de 10 minutos para afastar o mal. Aquilo foi muito além de constrangedor; foi, acima de tudo, uma contrariedade porque os personagens foram embora com as fantasias, as lindas falas e todas as cores do arco-íris. A música deu lugar a um silêncio barulhento e incômodo. Pela primeira vez, no dia, ela viu seus móveis, suas paredes lascadas, mal pintadas e sujas; até o cheiro de mofo ela sentiu, quando antes tudo era só arrebol, relva e perfumes.
Após esse dia, remoeu muito as entranhas para representar a si mesma. Andava pelos cantos da casa sem graça, sem sentido. Deu para dançar ao lado da vitrola. Seu irmão a xingou e riu dela. Mas, apesar dos inúmeros ataques e diagnósticos, encontrou logo um jeito de reformular seu teatro e dar continuidade às reinvenções com as paredes. Com um pouco de cuidado da atriz somado ao fato de que os familiares já estavam novamente centrados em suas contas e mundos, não voltou mais a ser flagrada.
Foi um alívio poder tirar o pé da realidade e não ver mais o chão nem o teto do quarto. Talvez não se incomodasse com o diagnóstico de louca ou obssedada, mas preferia não despertar suspeitas porque não queria dar problemas nem ser curada. Seguiu em frente com os seus etéreos, seu mundo fluídico invisível, sua tábua de salvação. Não casou nem se envolveu com nada e em nada que pudesse endireitá-la e a obrigasse a caminhar no mesmo percurso triste e sem graça que via estabelecido para todo mundo.
Voliu. Voou. Fugiu.
E passou o tempo. Muitos, que a viam, julgavam que fosse uma simples mulher sob saias e sobre saltos, mas nada havia mudado: era ela o vento que morava no seu corpo e o impelia para mares, nuvens, abismos... Era aquela que odiava relógio e acordar por obrigação. Gostava de despertar naturalmente porque amanheceu nela um dia peculiar próprio e sua ave interior despertou linda e indisciplinada, alçando as asas inúteis para o céu do quarto. Era um ser, uma mulher que recusou a forma, a fôrma e não vestiu o figurino adequado para a opereta que rola por aí. Cumpria a tortura de entrar no "modo-produtivo" e enfrentava a via-crúcis do trânsito porque não se faz filosofia com boleto. É pagar ou pagar, se não quiser viver na rua.
Clara sabia disso e nunca perdeu de vista os mandamentos capitalistas. Foi por conta deles que restringiu, com o tempo, o seu faz de conta aos horários livres. Escrever é o que passou a fazer amiúde. Seu corpo, plantado no quarto, deu lugar a uma tecedora alada que só mesmo uma aranha poderia entender.
Cristina Ribeiro R
Enviado por Cristina Ribeiro R em 18/05/2025
Alterado em 05/06/2025